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Deus, que alegre que esta noite pra mim
Foi, amiga, num sonho que sonhei,
Porque eu sonhava como vos direi:
Que me falava meu amigo assim:
«Falai comigo, ai! minha luz, meu bem!»
Não fui no mundo mais feliz mulher
que em sonho, nem o poderia ser,
pois sonhei que me viera dizer
aquele que a mim melhor que a si quer:
«Falai comigo, ai! minha luz, meu bem!»
Ao despertar, senti grande pesar,
porque no sonho havia grande graça,
qual súplica que a Nosso Senhor faça
quem a mim sabe mais que a si amar:
«Falai comigo, ai! minha luz, meu bem!»
Despertei-me, então fui a Deus rogar
que me realizasse o sonho, amém.
(tradução livre)
A crise da representação da virada do século XIX para o XX foi uma das principais reviravoltas da expressão. A arte burguesa era substancial e exprimia um sentido evidente e muitas vezes ideológico. Um véu de verossimilhança escondia o sonho do romance nas suas tramas folhetinescas ou panfletárias. Havia como um filtro que transformava as ideologias mais farsescas em histórias concatenadas; como se personagens, tempo, espaço e ação fossem representações simbólicas de objetos, para cuja existência havia inúmeras interpretações possíveis. No entanto, a multiplicidade de explicações possíveis para o mundo conflita diretamente com o individualismo. A expressão individual, expressão do uno, do unívoco, do sonho perfeito que narra e que apenas se refere ao sujeito não pode ter como referência análoga uma variedade múltipla de ideologias.
A arte, então, entra em crise. Desta vez, a sucessiva reiteração crítico-científica descolou o sentido ideológico do conteúdo das obras para a própria obra em si. É nesse momento em que o sonho se debruça sobre si mesmo e o mesmo acontece com o romance. Freud, em 1899, publica a Interpretação dos Sonhos e Proust em 1913, No Caminho de Swann. O romance se desencontra da matéria e se dobra sobre os temas que dizem respeito ao próprio romance e ao seu processo engenhoso de construção ficcional. Surgem experimentações metalinguísticas e autorreferenciais como inovações do foco narrativo, inovações linguísticas, superposição de gêneros etc. que engessaram o romance (visto que, agora, toda a sua composição é escancaradamente técnica) dentro do próprio indivíduo. Vazio de sentido aparente e arquitetonicamente estruturado, o romance afunda cada vez mais no sonho de que ele é matéria-prima, por um lado construindo uma forma impecável e, por outro, desnudando ele mesmo a criação ficcional.
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No mundo em que se pode registrar som e imagem, realçar contornos, viajar para países longínquos em poucas horas, copiar, colar, deletar, salvar. Neste mundo em que se pode conversar com pessoas do outro lado do mundo, vê-las, ouvi-las. No mundo em que todas as coisas são compradas ao alcance de um clique, todas as ruas podem ser encontradas, todos os cotidianos podem ser visitados. Num mundo em que perguntas não precisam ser mais feitas. Neste mundo em que você pode ter todas as imagens que quiser, montar a sua própria história, os seus próprios interesses, seus próprios dogmas. Ler todos os livros do seu interesse, ter acesso a todas as músicas que lhe agradam, conhecer pessoas que compartilham os mesmos gostos e ideias. No mundo em que perguntas não precisam mais ser feitas, porque todas as respostas podem ser encontradas sem que você se denuncie. No mundo em que perguntas não precisam ser mais feitas, porque todas as respostas que você quer dar ao mundo estão à sua disposição, elencadas em todas as formas possíveis de imagem que você pode criar para si e para os outros. Neste mundo em que você pode ver e rever uma realidade, transformá-la e simultaneamente comparar o que havia com o que agora há.
Este é o mundo da criação, o mundo do sonho.
O século XXI e a internet talvez representem o estágio mais avançado já atingido pela ideologia burguesa. No século em que todos são burgueses, livres, têm todo o mundo (e varios mundos e nenhum mundo e mundo nenhum) às suas mãos para fazer o que bem entender com ele; eis a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Neste mundo virtual, a vida tornou-se romance, tornou-se sonho. Aqui, o indivíduo tem toda a liberdade para ser o que quiser e inventar e reinventar e destruir e construir o que bem entender. Este século marca o fim do romance, porque tudo é romanesco, porque tudo é sonho, porque você é o seu deus, dono do destino e da figura e da linguagem que criou para si.
(quero deixar os créditos desse parágrafo à Naná DeLuca) Mas se a criação chegar ao seu momento mais libertário, à máxima individualização do mundo, tudo o que pode restar é o fim dos sentimentos, o fim da expressão. O indivíduo se tornou o criador de si mesmo, o motor de todas as suas vontades, aspirações. Tornou-se livre e não mais precisa da alteridade. A necessidade de se exprimir para o outro inexiste e isso reduz a ideologia burguesa a zero.
Todo o projeto ideológico da burguesia sempre se pautou na liberdade objetiva, tendo como conteúdo a sentimentalidade expressiva. Uma das possibilidades renovadoras para fim da ideologia burguesa seria, por um lado, a transformação dessa liberdade ideológica em verdade, renovando o indivíduo e tornando-o seu próprio deus. Contudo, a consequência mais violenta dessa liberdade é a cadência da expressão sentimental. Enfim, é como se a aplicação da ideologia burguesa enterrasse aquilo sobre o que está pautada, o amor. A ideologia se destruirá no momento em que se tornar prática.
Eis o mundo em que o mito é enterrado, porque toda consciência é feita a partir de escolhas e o mundo mítico independe da escolha do indivíduo. Agora que a vida humana pode ser gerada sem o pecado original, quando existe a escolha da fertilização artificial - Adão e Eva retornam ao paraíso -, tudo o que resta é ideologia. Ideologia é poder escolher o seu destino, e o mito não permite a escolha. Mito e sonho se combinam e se desintegram.
A possibilidade de escolha redefiniu a expressão. Toda expressão artística requisita um desconforto, uma necessidade de criar. Se o mundo mítico ruiu e tudo agora se tornou escolha, o desconforto se esvai e a expressividade entra em crise, paradoxalmente, num universo que é basicamente feito da criação individual.
A fragmentação da ciência e dos objetos criou um vazio potente, um buraco negro que, por um lado, zerou a qualidade dos sentimentos e, por outro, pulverizou a ficção dando a ela vida e autonomia. Toda a ideologia burguesa, fundamentada pelos sentimentos e sensações individuais, só pode terminar quando se tornar a única realidade. Entretando, essa transformação da realidade em ficção reduz os sentimentos a nada, o que condena as formas de expressão. No fim, o Mefistófeles da aposta trágica que a burguesia travou com a ficção é o sonho. Ganha-se nessa negociação o mundo perfeito e explicado: tê-lo nas mãos a seu bel-prazer, viver a própria ficção conforme a vontade individual. Perdem-se os sentimentos e a expressão: a condenação da arte no mundo em que o amor resumiu-se a uma membrana permeável.
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