sexta-feira, outubro 15, 2010

um sonho de romance ― apêndice

O que fiz nesse percurso teórico-especulativo em torno do romance foi ao mesmo tempo uma tentativa de levantar a discussão sobre a história do romance e a história da investigação científica (acadêmica, pertinente, objetiva ou teórica). Não utilizei para tanto recursos metodológicos rígidos, de forma que fui me deixando levar pela minha própria observação e pelos meus gostos. E (cabe aqui uma referência ao Samuel Guimarães), uma vez colocado que toda teoria é a burocratização de uma ideia, não me deixei prender a nenhuma contradição, deixando-as aflorar à medida que pude experienciá-las e explorá-las. Posso, portanto, ser acusado de anacrônico, alienado ou mesmo de ignorante - e não vou me defender sob o argumento da incompreensão. Se alguém não se fez entender aqui não fui eu, mas o sonho do romance enquanto texto e enquanto teoria.

Um Sonho de Romance nada mais é do que o resultado da especulação de uma geração esquizofrênica e não roubo para mim a pretensão de ser o porta-voz dessa geração. Quero deixar registrado que, por mais que meu texto se construa tendo por base os mais variados e paradoxais pontos de vista, existe uma coerência interna que não se impõe pela lógica ou pela arbitrariedade, mas pelo aproveitamento minucioso do que há de mais coerente e permeável em toda teoria que valha alguma consideração.

Alguns, ainda que se tenham abstido nos comentários desse blog, já tentaram condensar as ideias aqui propostas sob alcunhas tais como “onirismo” ou “quimerismo”, ambas muito a propósito. No entanto, desencarrego-me da redução destas ideias a qualquer limitação sígnea; não estou propondo uma corrente inovadora ou revisitando alguma antiga: procuro um ponto de vista inocente, como qualquer sonho. Lavo-me as mãos.

Resta ainda o primeiro propósito deste apêndice (e peço desculpas pela demora, mas os interlúdios eram necessários para combater certos abutres) que é a análise de tradução (trans-criação?) da cantiga de amigo de D. João Mendes, que usei como epígrafe de duas partes d’Um sonho de romance.

Ainda longe da concepção do romance, o trovador desenvolveu na cantiga uma sutil experiência onírica. O amante está longe da amada, como em toda cantiga de amigo, mas existe um lugar em que os dois se encontram: no sonho. D. João Mendes conseguiu reproduzir a experiência do sonho sem narrá-lo, mas dando a ele a voz do ser amado.

O sonho é, para a amada, a voz de seu amante chamando-a. Tudo o que podemos extrair dele é apenas dialogal - como muitas manifestações na Idade Média pois In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum. O verso pulsa como se amante, sonho e diálogo fossem apenas um só: “ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!. A frase é ao mesmo tempo o convite e a realização de um encontro entre amantes que é presentificadamente impossível. O sonho é a revelação do desejo da amada de encontrar o seu amante e sua espera de que ele a convide para a falar com ele. Esse falar pode ser interpretado não como se fosse simplesmente eventual, mas sugere, visto que é realizado por um sonho, um encontro efetivamente sexual.

De toda forma, apreendemos pelas duas últimas estrofes da cantiga que o mediador entre o mundo do sonho e o mundo real (e possível criador do sonho) é Deus. Não há uma consciência subjetiva individual que dê à amiga o poder da geração do sonho. Portanto, o amor entre os dois e, mais importante, sua realização seriam intermediados por Deus que é externo ao sujeito poético e conciliador potente entre o mundo ficcional e o mundo real. Cabe à amiga, que sofre pelo desencontro amoroso, somente o desconforto da ausência do amante e suas preces para que o sonho (amor?) se concretize. O resto lhe é indiferente, não sofre influência de sua parte. E mesmo o que há nela de mais potente, suas preces, está sujeita à aprovação de uma alteridade que lhe é superior e onipotente. O homem medieval, ainda que em contato com o sonho, não tem domínio, controle ou força sobre os acontecimentos da sua vida - e essa forma de ver o mundo se concretiza poeticamente inclusive na estrutura da própria cantiga.

Isso significa basicamente que o sonho não precisa ser narrado. A voz do amante (que é, como já disse, tudo o que nos restou do sonho e sua própria realização) não é nada senão um fragmento trovadoresco que é indissociável da cantiga. Pode-se assumir o sonho como verdade, porque o intermédio de Deus tramita todas as relações entre sonho e realidade, não havendo nenhuma força externa que force o sonho a se narrativizar ou a se estruturar de forma que se torne compreensível fora da rigidez do real. E isso acontece basicamente porque Deus está além das percepções humanas de sonho e realidade.

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quarta-feira, outubro 06, 2010

um sonho de romance 3 ― o projeto burguês (fim)

(...)

Deus, que alegre que esta noite pra mim
Foi, amiga, num sonho que sonhei,
Porque eu sonhava como vos direi:
Que me falava meu amigo assim:
«Falai comigo, ai! minha luz, meu bem!»

Não fui no mundo mais feliz mulher
que em sonho, nem o poderia ser,
pois sonhei que me viera dizer
aquele que a mim melhor que a si quer:
«Falai comigo, ai! minha luz, meu bem!»

Ao despertar, senti grande pesar,
porque no sonho havia grande graça,
qual súplica que a Nosso Senhor faça
quem a mim sabe mais que a si amar:
«Falai comigo, ai! minha luz, meu bem!»

Despertei-me, então fui a Deus rogar
que me realizasse o sonho, amém.

(tradução livre)

A crise da representação da virada do século XIX para o XX foi uma das principais reviravoltas da expressão. A arte burguesa era substancial e exprimia um sentido evidente e muitas vezes ideológico. Um véu de verossimilhança escondia o sonho do romance nas suas tramas folhetinescas ou panfletárias. Havia como um filtro que transformava as ideologias mais farsescas em histórias concatenadas; como se personagens, tempo, espaço e ação fossem representações simbólicas de objetos, para cuja existência havia inúmeras interpretações possíveis. No entanto, a multiplicidade de explicações possíveis para o mundo conflita diretamente com o individualismo. A expressão individual, expressão do uno, do unívoco, do sonho perfeito que narra e que apenas se refere ao sujeito não pode ter como referência análoga uma variedade múltipla de ideologias.

A arte, então, entra em crise. Desta vez, a sucessiva reiteração crítico-científica descolou o sentido ideológico do conteúdo das obras para a própria obra em si. É nesse momento em que o sonho se debruça sobre si mesmo e o mesmo acontece com o romance. Freud, em 1899, publica a Interpretação dos Sonhos e Proust em 1913, No Caminho de Swann. O romance se desencontra da matéria e se dobra sobre os temas que dizem respeito ao próprio romance e ao seu processo engenhoso de construção ficcional. Surgem experimentações metalinguísticas e autorreferenciais como inovações do foco narrativo, inovações linguísticas, superposição de gêneros etc. que engessaram o romance (visto que, agora, toda a sua composição é escancaradamente técnica) dentro do próprio indivíduo. Vazio de sentido aparente e arquitetonicamente estruturado, o romance afunda cada vez mais no sonho de que ele é matéria-prima, por um lado construindo uma forma impecável e, por outro, desnudando ele mesmo a criação ficcional.

***

No mundo em que se pode registrar som e imagem, realçar contornos, viajar para países longínquos em poucas horas, copiar, colar, deletar, salvar. Neste mundo em que se pode conversar com pessoas do outro lado do mundo, vê-las, ouvi-las. No mundo em que todas as coisas são compradas ao alcance de um clique, todas as ruas podem ser encontradas, todos os cotidianos podem ser visitados. Num mundo em que perguntas não precisam ser mais feitas. Neste mundo em que você pode ter todas as imagens que quiser, montar a sua própria história, os seus próprios interesses, seus próprios dogmas. Ler todos os livros do seu interesse, ter acesso a todas as músicas que lhe agradam, conhecer pessoas que compartilham os mesmos gostos e ideias. No mundo em que perguntas não precisam mais ser feitas, porque todas as respostas podem ser encontradas sem que você se denuncie. No mundo em que perguntas não precisam ser mais feitas, porque todas as respostas que você quer dar ao mundo estão à sua disposição, elencadas em todas as formas possíveis de imagem que você pode criar para si e para os outros. Neste mundo em que você pode ver e rever uma realidade, transformá-la e simultaneamente comparar o que havia com o que agora há.

Este é o mundo da criação, o mundo do sonho.

O século XXI e a internet talvez representem o estágio mais avançado já atingido pela ideologia burguesa. No século em que todos são burgueses, livres, têm todo o mundo (e varios mundos e nenhum mundo e mundo nenhum) às suas mãos para fazer o que bem entender com ele; eis a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Neste mundo virtual, a vida tornou-se romance, tornou-se sonho. Aqui, o indivíduo tem toda a liberdade para ser o que quiser e inventar e reinventar e destruir e construir o que bem entender. Este século marca o fim do romance, porque tudo é romanesco, porque tudo é sonho, porque você é o seu deus, dono do destino e da figura e da linguagem que criou para si.

(quero deixar os créditos desse parágrafo à Naná DeLuca) Mas se a criação chegar ao seu momento mais libertário, à máxima individualização do mundo, tudo o que pode restar é o fim dos sentimentos, o fim da expressão. O indivíduo se tornou o criador de si mesmo, o motor de todas as suas vontades, aspirações. Tornou-se livre e não mais precisa da alteridade. A necessidade de se exprimir para o outro inexiste e isso reduz a ideologia burguesa a zero.

Todo o projeto ideológico da burguesia sempre se pautou na liberdade objetiva, tendo como conteúdo a sentimentalidade expressiva. Uma das possibilidades renovadoras para fim da ideologia burguesa seria, por um lado, a transformação dessa liberdade ideológica em verdade, renovando o indivíduo e tornando-o seu próprio deus. Contudo, a consequência mais violenta dessa liberdade é a cadência da expressão sentimental. Enfim, é como se a aplicação da ideologia burguesa enterrasse aquilo sobre o que está pautada, o amor. A ideologia se destruirá no momento em que se tornar prática.

Eis o mundo em que o mito é enterrado, porque toda consciência é feita a partir de escolhas e o mundo mítico independe da escolha do indivíduo. Agora que a vida humana pode ser gerada sem o pecado original, quando existe a escolha da fertilização artificial - Adão e Eva retornam ao paraíso -, tudo o que resta é ideologia. Ideologia é poder escolher o seu destino, e o mito não permite a escolha. Mito e sonho se combinam e se desintegram.

A possibilidade de escolha redefiniu a expressão. Toda expressão artística requisita um desconforto, uma necessidade de criar. Se o mundo mítico ruiu e tudo agora se tornou escolha, o desconforto se esvai e a expressividade entra em crise, paradoxalmente, num universo que é basicamente feito da criação individual.

A fragmentação da ciência e dos objetos criou um vazio potente, um buraco negro que, por um lado, zerou a qualidade dos sentimentos e, por outro, pulverizou a ficção dando a ela vida e autonomia. Toda a ideologia burguesa, fundamentada pelos sentimentos e sensações individuais, só pode terminar quando se tornar a única realidade. Entretando, essa transformação da realidade em ficção reduz os sentimentos a nada, o que condena as formas de expressão. No fim, o Mefistófeles da aposta trágica que a burguesia travou com a ficção é o sonho. Ganha-se nessa negociação o mundo perfeito e explicado: tê-lo nas mãos a seu bel-prazer, viver a própria ficção conforme a vontade individual. Perdem-se os sentimentos e a expressão: a condenação da arte no mundo em que o amor resumiu-se a uma membrana permeável.

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segunda-feira, outubro 04, 2010

um sonho de romance 2

(...)

A concretização do sonho o transformou em objeto e, portanto, passível de análise. O romance enquanto forma concreta nasceu junto com a sua crítica científica, seus paralelismos e convergências. A ciência se apossou do romance no instante em que ele se instituiu por sua finitude enquanto objeto. A crítica científica engessou o romance a partir da sua própria formação e cada tipo de ciência preocupou-se em defini-lo e remoldá-lo segundo seus próprios preceitos.

À medida que a ciência se desenvolvia, mais ciências eram criadas, mais objetos passaram a ser observados, novas possibilidades e métodos de análise e interpretação apareceram. Dessa forma, o romance foi tomando inúmeras formas diferentes, concorrentes ou divergentes entre si, recebendo um impacto transformador inevitável a cada vez que se estabelecia. A cada nova forma romancesca, nascia consigo uma nova crítica, que por sua vez já modificava tanto os romances já existentes como os romances por nascer. O romance e a crítica se tornaram autodestrutivos, porque nunca conseguiam se sobrepor um ao outro e nunca conseguiram parar de se transformar mutuamente.

O sonho, por sua vez, não sofreu menos. Todo esse universo limiar do sonho, da loucura, do inconsciente, do fora, a parcela indizível do que é-sem-ser foi apossado pelas ciências no instante em que se instituiu como objeto finito. A ciência institui objetos e os faz falar segundo seus moldes, segundo suas línguas. O sonho tornou-se objeto da ciência e isso o transformou da mesma maneira que o romance foi transformado pela crítica. O sonhou tornou-se matéria de discussão e passou a contar uma história que fosse palpável, transmissível; em suma, transformou-se em narrativa.

O sonho (bem como o romance) que primeiro era a experiência e tornou-se mito, agora se via completamente desmistificado. A sua construção, seu esqueleto, sua forma não permitia mais a magia. O romance também não. Os grãos de encanto que ainda existiam foram atirados ao vento e tudo o que sobrou foi a toalha trançada, com toda a sua estrutura desmistificada e explicável.

O sonho tomou consciência de si mesmo, se cientificou, tornou-se objeto de seu próprio universo: o romance internalizou-se num nível tão denso que talvez não nos seja possível alcançar. A fragmentação das ciências e a multiplicação ininterrupta dos objetos, essa máxima condensação de todos os focos, cientificaram o próprio sonho, tornando-o objeto de si mesmo e impedindo, assim, a concretude do romance. A ficção está esgotada.

A conscientização dos alicerces de sua estrutura impregnam o romance com uma objetividade que o impede de ser científico, revolucionário, psicológico, metafísico, aventuresco, autobiográfico, religioso, metalinguístico, moralista etc., porque a desmistificação do sonho pôs em xeque a criação ficcional. É o sepultamento da expressão da narrativa onírica, visto que ela não significa mais nada num mundo de objetividades e explicações. O mito se desdobrou em si mesmo encerrando a tragédia do romance, cujo prólogo era a contradição bovaryana. Madame Bovary não é mais uma personagem, mas o romance-tese-sonho que se envenenou a si mesmo.

(...continua...)

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um sonho de romance 1

"Deus, que leda que m'esta noyte uy,
amiga, en hun sonho que ssonhey,
ca sonhaua eu como uos direy:
que me dizia meu amig' assy:
«ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!»

Non foy no mundo tan leda molher
en sonho, nen no podia seer,
ca ssonhei que me uẽera dizer
aquel que me milhor que a ssy quer:
«ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!»

Des que m' espertey, ouui gran pesar,
ca em tal sonho auia gran sabor,
como rrogar-me por Nostro Senhor
o que me sabe mais que ssy amar:
«ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!»

E, poys m' espertey, foy a Deus rrogar
que me ssacass' aqueste sonh' a bem.
"

(D. Joan Mendez)

A modernidade transformou o sonho em narrativa. As grandes epopeias, os grandes mitos universais, deus enquanto figura indissociada do mundo não tinham mais lugar no mundo da individualidade. A narrativa onírica impera na nova era da modernidade como sendo a única saída para a constituição de um mythos. O sonho representa em si mesmo todos os valores individuais mais primários, o próprio sonho é a locomotiva do indivíduo e o que ele tem de mais individualizado e próprio.

A narrativa moderna se construiu sob a justeza do sonho - única experiência que compactaria a individualidade dos novos tempos com a necessidade comunitária de representação. A arte (ou seu conceito moderno) se configura, portanto, como uma arte de sonho, de pura expressão e individualidade. Constitui-se baseada na contradição onírica imperdoável à lógica narrativa.

A Idade Média era o mundo do sonho. Não viva-se, sonhava-se. Todas as coisas estavam onde deveriam estar. O mundo era perfeitamente explicável a partir de preceitos subjetivos que transitavam livremente numa consciência que estruturava tudo à batida mágica do cajado de Moisés. Um simples toque de condão transformava toda a experiência em mito. A experiência era o mito que imprescindia a experiência.

Então a objetividade dos novos tempos condensou (DICHTEN = CONDENSARE) o mundo do sonho no indivíduo. As Luzes, que vieram para explicar o mundo da experiência e da concretude, enclausuraram o sonho no indivíduo, rasgando-o do mundo para constituir um sujeito independente. Assim surge o romance. O primeiro passo em direção ao romance, a epopeia ao contrário ou o romance de descavalaria, Quixote, nada mais é do que a errância de um sonhador (louco ou sonhador?) no mundo das realidades. Um sonhador curiosamente medieval. Mas é em Flaubert que o romance se institui como forma excelente. O romance ideal. Madame Bovary é um romance do sonho sobre o sonho. Toda a manifestação romanesca concretiza-se unicamente usando como matéria-prima o sonho.

O mundo enclausurou o sonho na forma do romance. Entretanto, por natureza, o sonho não existe efetivamente. Tudo o que nos sobra dos sonhos são lembranças imperfeitas de algo que nunca aconteceu. O romance é uma tentativa de concretização desse impulso à inexistência simbólica: o romance, enquanto sonho, não existe nem nunca existiu. Enquanto forma, está destroçado e resumido a letras, figuras e ações de personagens tão vazios quanto a matéria gráfica de que são feitos. A leitura de um romance é a tentativa reiterada de reviver na consciência o processo da vivência onírica. A leitura individual - até ritualística - de um romance é análoga ao sono. Efetivamente, a reprodução mental do romance não existe; ela encosta naquele universo quixotesco, em que não se sabe distinguir mais entre loucura e sonho. O universo em que as coisas, apesar de serem, não são e onde todas as contradições do mundo encontram paz.

(...continua...)

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