segunda-feira, outubro 04, 2010

um sonho de romance 1

"Deus, que leda que m'esta noyte uy,
amiga, en hun sonho que ssonhey,
ca sonhaua eu como uos direy:
que me dizia meu amig' assy:
«ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!»

Non foy no mundo tan leda molher
en sonho, nen no podia seer,
ca ssonhei que me uẽera dizer
aquel que me milhor que a ssy quer:
«ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!»

Des que m' espertey, ouui gran pesar,
ca em tal sonho auia gran sabor,
como rrogar-me por Nostro Senhor
o que me sabe mais que ssy amar:
«ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!»

E, poys m' espertey, foy a Deus rrogar
que me ssacass' aqueste sonh' a bem.
"

(D. Joan Mendez)

A modernidade transformou o sonho em narrativa. As grandes epopeias, os grandes mitos universais, deus enquanto figura indissociada do mundo não tinham mais lugar no mundo da individualidade. A narrativa onírica impera na nova era da modernidade como sendo a única saída para a constituição de um mythos. O sonho representa em si mesmo todos os valores individuais mais primários, o próprio sonho é a locomotiva do indivíduo e o que ele tem de mais individualizado e próprio.

A narrativa moderna se construiu sob a justeza do sonho - única experiência que compactaria a individualidade dos novos tempos com a necessidade comunitária de representação. A arte (ou seu conceito moderno) se configura, portanto, como uma arte de sonho, de pura expressão e individualidade. Constitui-se baseada na contradição onírica imperdoável à lógica narrativa.

A Idade Média era o mundo do sonho. Não viva-se, sonhava-se. Todas as coisas estavam onde deveriam estar. O mundo era perfeitamente explicável a partir de preceitos subjetivos que transitavam livremente numa consciência que estruturava tudo à batida mágica do cajado de Moisés. Um simples toque de condão transformava toda a experiência em mito. A experiência era o mito que imprescindia a experiência.

Então a objetividade dos novos tempos condensou (DICHTEN = CONDENSARE) o mundo do sonho no indivíduo. As Luzes, que vieram para explicar o mundo da experiência e da concretude, enclausuraram o sonho no indivíduo, rasgando-o do mundo para constituir um sujeito independente. Assim surge o romance. O primeiro passo em direção ao romance, a epopeia ao contrário ou o romance de descavalaria, Quixote, nada mais é do que a errância de um sonhador (louco ou sonhador?) no mundo das realidades. Um sonhador curiosamente medieval. Mas é em Flaubert que o romance se institui como forma excelente. O romance ideal. Madame Bovary é um romance do sonho sobre o sonho. Toda a manifestação romanesca concretiza-se unicamente usando como matéria-prima o sonho.

O mundo enclausurou o sonho na forma do romance. Entretanto, por natureza, o sonho não existe efetivamente. Tudo o que nos sobra dos sonhos são lembranças imperfeitas de algo que nunca aconteceu. O romance é uma tentativa de concretização desse impulso à inexistência simbólica: o romance, enquanto sonho, não existe nem nunca existiu. Enquanto forma, está destroçado e resumido a letras, figuras e ações de personagens tão vazios quanto a matéria gráfica de que são feitos. A leitura de um romance é a tentativa reiterada de reviver na consciência o processo da vivência onírica. A leitura individual - até ritualística - de um romance é análoga ao sono. Efetivamente, a reprodução mental do romance não existe; ela encosta naquele universo quixotesco, em que não se sabe distinguir mais entre loucura e sonho. O universo em que as coisas, apesar de serem, não são e onde todas as contradições do mundo encontram paz.

(...continua...)

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1 Comments:

Blogger Paulo said...

PQP QUE PIRA! acho que vai ficar excelente, mas aguardo a continuação pra ver se me sinto menos perdido.

4/10/10 18:28  

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