um sonho de romance ― apêndice
O que fiz nesse percurso teórico-especulativo em torno do romance foi ao mesmo tempo uma tentativa de levantar a discussão sobre a história do romance e a história da investigação científica (acadêmica, pertinente, objetiva ou teórica). Não utilizei para tanto recursos metodológicos rígidos, de forma que fui me deixando levar pela minha própria observação e pelos meus gostos. E (cabe aqui uma referência ao Samuel Guimarães), uma vez colocado que toda teoria é a burocratização de uma ideia, não me deixei prender a nenhuma contradição, deixando-as aflorar à medida que pude experienciá-las e explorá-las. Posso, portanto, ser acusado de anacrônico, alienado ou mesmo de ignorante - e não vou me defender sob o argumento da incompreensão. Se alguém não se fez entender aqui não fui eu, mas o sonho do romance enquanto texto e enquanto teoria.
Um Sonho de Romance nada mais é do que o resultado da especulação de uma geração esquizofrênica e não roubo para mim a pretensão de ser o porta-voz dessa geração. Quero deixar registrado que, por mais que meu texto se construa tendo por base os mais variados e paradoxais pontos de vista, existe uma coerência interna que não se impõe pela lógica ou pela arbitrariedade, mas pelo aproveitamento minucioso do que há de mais coerente e permeável em toda teoria que valha alguma consideração.
Alguns, ainda que se tenham abstido nos comentários desse blog, já tentaram condensar as ideias aqui propostas sob alcunhas tais como “onirismo” ou “quimerismo”, ambas muito a propósito. No entanto, desencarrego-me da redução destas ideias a qualquer limitação sígnea; não estou propondo uma corrente inovadora ou revisitando alguma antiga: procuro um ponto de vista inocente, como qualquer sonho. Lavo-me as mãos.
Resta ainda o primeiro propósito deste apêndice (e peço desculpas pela demora, mas os interlúdios eram necessários para combater certos abutres) que é a análise de tradução (trans-criação?) da cantiga de amigo de D. João Mendes, que usei como epígrafe de duas partes d’Um sonho de romance.
Ainda longe da concepção do romance, o trovador desenvolveu na cantiga uma sutil experiência onírica. O amante está longe da amada, como em toda cantiga de amigo, mas existe um lugar em que os dois se encontram: no sonho. D. João Mendes conseguiu reproduzir a experiência do sonho sem narrá-lo, mas dando a ele a voz do ser amado.
O sonho é, para a amada, a voz de seu amante chamando-a. Tudo o que podemos extrair dele é apenas dialogal - como muitas manifestações na Idade Média pois In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum. O verso pulsa como se amante, sonho e diálogo fossem apenas um só: “ffalade mig' ay meu lum' e meu bem!”. A frase é ao mesmo tempo o convite e a realização de um encontro entre amantes que é presentificadamente impossível. O sonho é a revelação do desejo da amada de encontrar o seu amante e sua espera de que ele a convide para a falar com ele. Esse falar pode ser interpretado não como se fosse simplesmente eventual, mas sugere, visto que é realizado por um sonho, um encontro efetivamente sexual.
De toda forma, apreendemos pelas duas últimas estrofes da cantiga que o mediador entre o mundo do sonho e o mundo real (e possível criador do sonho) é Deus. Não há uma consciência subjetiva individual que dê à amiga o poder da geração do sonho. Portanto, o amor entre os dois e, mais importante, sua realização seriam intermediados por Deus que é externo ao sujeito poético e conciliador potente entre o mundo ficcional e o mundo real. Cabe à amiga, que sofre pelo desencontro amoroso, somente o desconforto da ausência do amante e suas preces para que o sonho (amor?) se concretize. O resto lhe é indiferente, não sofre influência de sua parte. E mesmo o que há nela de mais potente, suas preces, está sujeita à aprovação de uma alteridade que lhe é superior e onipotente. O homem medieval, ainda que em contato com o sonho, não tem domínio, controle ou força sobre os acontecimentos da sua vida - e essa forma de ver o mundo se concretiza poeticamente inclusive na estrutura da própria cantiga.
Isso significa basicamente que o sonho não precisa ser narrado. A voz do amante (que é, como já disse, tudo o que nos restou do sonho e sua própria realização) não é nada senão um fragmento trovadoresco que é indissociável da cantiga. Pode-se assumir o sonho como verdade, porque o intermédio de Deus tramita todas as relações entre sonho e realidade, não havendo nenhuma força externa que force o sonho a se narrativizar ou a se estruturar de forma que se torne compreensível fora da rigidez do real. E isso acontece basicamente porque Deus está além das percepções humanas de sonho e realidade.
Marcadores: crítica, literatura